Feminismo, assédio e afins
- Uma tarde de outono, talvez há dois anos (pré-covid porque não havia máscaras), eu lembro-me de estar frio, tinha casaco grosso, calças e botas. Lembro-me porque tenho na memória pensar que estava toda vestida. Um homem mais velho, no comboio, sentou-se de frente para mim. Eu estava no telemóvel e quando levanto a cabeça, vejo que tem a braguilha aberta e algo muito estranho a ocorrer naquela zona enquanto ele olhava para mim. Desviei logo o olhar, de vergonha e nojo, levantei-me e mudei para a outra ponta do comboio.
- Uma noite fui jantar com as minhas amigas ao Santiago no Porto. Recordo-me que era setembro do ano passado porque marcamos jantar para lhes contar como tinham sido as férias. Eram praí 21h quando saímos porque o Santiago estava com fila e tínhamos que libertar a mesa. A Praça dos Poveiros estava a abarrotar de gente e mesmo no passeio do Santiago junto aos carros, um homem estava com o orgão genital de fora, a tocar-se e a olhar para nós. Eu avisei-as, abracei-as pelas costas e desviei-nos daquela situação.
- Há muito tempo já, talvez ainda nem tivesse 20 anos, na rua mais movimentada de Espinho, eu estava a caminhar pelo passeio. Havia imensa gente por todo o lado e vinha um homem apressado na direção contrária, meio a falar sozinho, parecia drogado ou talvez sofresse de algo do foro mental. No momento em que nos cruzamos ele estica a mão, apalpa-me o peito e ri. Foi muito rápido e acho que ninguém reparou. Eu desviei-me o possível sem ir para a estrada e continuei a caminhar rápido.
A verdade é que eu acho que sou uma mulher sortuda. Para todas as situações que eu já vivi, coisas pelas quais passei, andar sozinha durante a noite, madrugadas fora, confiar em pessoas que outras pessoas me gritariam para saltar fora, colocar-me em posições onde poderiam fazer de mim o que quisessem... eu poderia ter histórias muito piores para contar. Não tenho e por isso sou uma sortuda. Eu lembro-me destes três momentos na minha vida como aqueles em que de forma mais clara o assédio esteve presente. Olhares na rua, bocas, isso é sem dúvida alguma frequente. Com o confinamento menos, mas facilmente seria algo diário, passando por um grupo de homens no café, ou etc. Vou lendo, pela internet fora, testemunhos de raparigas e mulheres que têm situações destas como as três aqui de cima muito mais frequentes do que eu e isso é uma realidade que felizmente não me pertence. Falar ao telefone para ir "acompanhada"? Super comum assim como pensar estrategicamente sobre pontos de fuga, estar bem alerta... sim identifico-me muito com esses comportamentos. Por ser mulher e, não consigo determinar, se não as tomaria se fosse homem. Nasci nesta realidade, fui educada para ser assim, é-me difícil pensar que não faria isso se fosse doutro género ou se o faria apenas para estar alerta do que me rodeia.
O meu irmão gosta de me chamar feminista como se fosse algo pejorativo. Há uns fins-de-semana atrás eu perguntei-lhe porquê e mostrei-lhe o conceito e ele ficou surpreendido. Perguntou "de certeza?". Eu li simplesmente a definição que está no Priberam. Considero-o como uma pessoa muito bem informada, engenheiro, boa pessoa mas para ele feminismo era algo em que as mulheres se colocavam superiores aos homens. Uma ideia completamente desviante da realidade. "Ah mas o feminismo hoje em dia..." O feminimo é um conceito que está no dicionário. Não inventem. Outro amigo meu, entre conversas, atirou-me um "feminazi" pelo que eu perguntei porquê de ele dizer aquilo. Só me respondeu "eu prefiro o conceito de equidade, já ouviste falar?" como se eu fosse burra... Enfim... Eu na realidade até me senti embaraçada de ter que explicar. Sabem... vergonha alheia? Mas em relação a pessoas que vocês têm em grande consideração? E que simplesmente não estão bem informadas e que vos tomam a vocês por extremistas? E que explicar parece quase entrar num ringue de lama? E custa-vos... Mas por outro lado, hoje em dia estar mal informado é quase uma escolha. E portanto custa menos. Mas custa na mesma porque de facto são pessoas that really should know better. A falta de clareza e de informação é gritante e no meio de pessoas que eu respeito, que são intrinsecamente boas pessoas e que não colocariam nunca uma mulher numa posição frágil.
Na verdade, o que eu acho em relação ao meu irmão e a este meu amigo é que estão tão dentro do lado certo que nem veem os errados. Nunca colocariam uma mulher numa posição desconfortável, são as pessoas mais respeitosas que eu conheço (e eu posso confirmar pela parte sexual também, não há aqui qualquer lado obscuro!), pelo que, na ótica deles, é uma realidade desconhecida, inexistente e/ou muito menos frequente do que o que realmente se passa. Não é por mal, é mesmo por ignorância, quase por ingenuidade. Não é uma realidade com a qual eles tivessem ou tenham que lidar. E isto é difícil de se ultrapassar. Eu quase que sofro do mesmo mal. Tive três situações que me ficaram na memória mas nem sequer foram grande stress para mim. No dia senti-me incomodada por cada uma delas mas nos dias seguintes já não se passava nada. Aliás, eu nem sequer as disse em voz alta, nem ao meu irmão, nem à minha mãe, muito menos ao pai. Pensar em dizer isso em voz alta é muito estranho, muita vergonha na realidade. Iria-me sentir embaraçada simplesmente pela situação em si. E até porque não há objetivo em dizer isso. Mas também não há objetivos em dizer milhentas coisas que se dizem... E além disso, falar de um problema é torná-lo maior. É verdade... Na identificação do problema no geral, falar dele é bom, dando-lhe a dimensão o mais aproximada possível à realidade mas para cada pessoa que fala, que se expõe, não é uma sensação bonita. Se me acontece algo que me incomoda a esse nível, sinto nojo só de pensar no que aconteceu, de relembrar a imagem gráfica, então nem quero verbalizá-la, passo à frente só e ignoro. Como ignoro os olhares e as bocas. Ignoro só. Mas agora que escrevo acerca disto chego à conclusão que talvez eu devesse ter falado... Porque contribui para que eles achem que não é assim tão frequente. E agora que penso nisto nem sei como terminar este texto. Acabo de me aperceber dos meus próprios erros neste tópico.
Sem dúvida que todos na sociedade têm um papel essencial na redução destas situações. Os homens bons deviam estar mais atentos e abertos ao que os rodeia e perceber que é mais frequente do que o que pensam, as mulheres e raparigas que vivem as situações na pele, deviam falar sobre elas e dizer isto aconteceu e isto não me deixou confortável. E os homens estúpidos que têm a ousadia de interferir assim com o espaço de alguém... Não tenho uma solução para eles. Gostaria que aprendessem na pele o reverso da medalha mas... não tenho estudos para propôr ensinamentos.
E porque os conceitos importam e muitas vezes esquecemo-nos deles (até eu), vale a pena lembrar que:
feminismo | n. m.
Movimento ideológico que preconiza a ampliação legal dos direitos civis e políticos da mulher ou a igualdade dos direitos dela aos do homem.
"feminismo", in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa [em linha], 2008-2021, https://dicionario.priberam.org/feminismo [consultado em 22-03-2021].
assédio | n. m.
1. Acto ou efeito de assediar.
2. Acção que consiste em cercar militarmente uma posição inimiga, geralmente durante um período prolongado ou que se calcula dever durar muito. = CERCO, SÍTIO
3. [Figurado] Comportamento desagradável ou incómodo a que alguém é sujeito repetidamente (ex.: o assédio dos paparazzi incomoda a cantora).
"assédio", in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa [em linha], 2008-2021, https://dicionario.priberam.org/ass%C3%A9dio [consultado em 22-03-2021].
assédio sexual
• Conjunto de actos ou ditos com intenções sexuais, geralmente levado a cabo por alguém que se encontra em posição (hierárquica, social, económica, etc.) privilegiada (ex.: aumenta o número de queixas por assédio sexual no local de trabalho)."assédio", in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa [em linha], 2008-2021, https://dicionario.priberam.org/ass%C3%A9dio [consultado em 22-03-2021].